Com a sensibilidade que somente acomete os poetas, Jota Nilson costuma afirmar que transita com desenvoltura no mundo das letras encordoadas, as quais acredita na plena compreensão dos seus leitores.
Em “A rua que foge por debaixo das pedras”, essas letras encordoadas, na maior parte deste trabalho, fazem uma imersão no universo da alma feminina sem a pretensão de desvendá-lo, mas sim, de visitá-lo com maior frequência, a fim de que o mesmo se torne mais acessível aos que não o conhecem ou não o compreendem.
A obra é composta de contos, mini e micro contos, citações filosóficas baratas, metáforas da vida moderna, declarações de amor em forma de letras de músicas, papo de botequim, impressões do cotidiano, análises aleatórias sobre assuntos nada importantes, vivências pessoais, enigmas, conselhos para quem não os pediu, além de poesias e fotos captadas de maneira amadora com aparelhos celulares, porém, trazendo a marca do olhar do autor.
Dedico esta obra a todas as mulheres que fizeram ou fazem parte da minha vida. Sem elas eu nada seria, pois foi de uma mulher forte o útero que me gestou e pariu, cabendo a ela a missão de me proteger nos primeiros passos.
E foi quando eu mais precisei, que um outro braço feminino me sustentou e levou da adolescência direto para a vida adulta.
Foi de um útero que amei e onde depositei minha semente, que ganhei o bem mais precioso da minha existência, minha filha Luísa, que hoje caminha pelas próprias pernas e desenha a sua história com as cores da própria verdade.
Amigas queridas tenho às pencas, são esteios com seus abraços e luz na escuridão.
Tenho tias e primas que fazem juz ao sentido mais amplo da palavra "mulher", enquanto guerreiras incansáveis.
Enfim, explorar o universo feminino é privilégio daqueles que reconhecem a força das mulheres
foto extraída da Internet
Dizem que a mulher é o sexo frágil, mas que mentira absurda!
Trecho da música "Mulher (Sexo frágil)" interpretada por Erasmo Carlos
e composta por Narinha - Erasmo Carlos
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas ou acontecimentos
reais, terá sido mera coincidência.
chave pix e-mail jotanilson@gmail.com
As fotos autorais que ilustram este trabalho, ajudam a contar um pouco da história da vida do autor, que afirma se lembrar com exatidão dos
colegas jornalistas ou dos familiares que estavam com ele nos momentos das capturas dessas imagens.
então pode haver
um pedacinho
de você aqui
Sinta-se à vontade para colaborar com um pix de qualquer valor
quando flor
Seu coração parecia ter se quebrado em milhões de pedaços. Entregou-lhe um sanduíche embrulhado num saco de papel e segurou uma lágrima.
Não queria vê-lo partir, pois não teria coragem de ver o trem se distanciar levando consigo um bocado de si.
Por um lado sentia-se orgulhosa, pois o menino, mal saído da infância, transformara-se num homem e, por outro, sentia-se pesarosa, pois sabia que não estaria por perto quando ele chorasse.
Varrer o pátio a ajudava a não pensar e, assim, os dias correriam mais rápido. Assoviava baixinho os acalantos, na esperança de que eles chegassem até seu filho, em sonhos, onde poderiam correr de mãos dadas pelo campo e pular no açude ou atravessar a pinguela e colher os frutos do outro lado do arroio, onde eles eram mais doces por causa da sombra.
Aprendeu a amalgamar sentimentos doloridos, que se tornavam cicatrizes que ela jogava para a alma, a fim de que ninguém as notasse.
Todas as noites, antes de dormir, pegava no colo a criança imaginária e, como num balé ensaiado, girava em movimentos suaves até que ambos ficassem tontos. Sorria um sorriso triste, puxava o lençol sobre o corpo e ao fechar os olhos dizia docemente:
- Fica com Deus, meu menino. Por onde fores, meu amor estará contigo.
Foto by Jota Nilson
Trilhos da estação ferroviária de Camobi
Santa Maria/RS
amor do verbo amar
Foto by Jota Nilson
Quarto do Hotel Argentino
Piriápolis/Uruguai
Queria compor um soneto, ó minha amada
Para poder ouvir-te ao fim da madrugada
Declamá-lo a mim, ao pé do ouvido
E, mesmo que a um leito de morte estendido
Tua voz, plangente ou cálida,
Ao tocar minha face, minha pele pálida
Trouxesse frêmito em meu frágil pulsar
Reviveria assim então, de súpeto,
Ardente, envolto em frenesi volupto
E com sofreguidão, passaria a te amar.
Ó sono, breu de escuridão infinda
Por quê insistes em retardar-te, ainda,
Causando-me dor, ao amor me privar?
Por certo queres essa formosa dama
Em tua alcova, a vicejar a chama
Que não te podes dar, ao me ver despertar.
Ó infame, vás agora!
Por favor, não te prolongues mais e, ao sair,
Apagues o refulgir dos castiçais.
Dispa-te desse sombrio manto,
Ajudes pois, a manter o encanto,
Ao me ver transmutar em mar bramindo,
Nos braços ternos dessa dama, rindo,
Ao ápice do amor, satisfeito chegar.
Ó amor, amor, que coisa louca,
Imensidão perdida em tua boca,
Suave delírio de dois unos seres,
Renascendo livres, presos aos prazeres,
Onde a carne é pão e vinho é indecência,
Marcando a pele em nesgas de demência,
Dos que arriscam o mar revolto, navegar,
De um simples verbo: o verbo amar!
lapso temporal
Teria sido uma ilusão, não fosse a presença constante da certeza.
Teus girassóis ainda gritam na ânsia da paz que procuras em ti.
Te daria o que me resta, em troca da cura que buscas.
Teu ponto, meu porto, nascido em outra década.
Foto by Jota Nilson
Lago Guaiba
Porto Alegre/RS
Foto by Jota Nilson
São João Del Rei
Minas Gerais
cicatrizes
Naquela noite a lua quase não apareceu. Era fim de madrugada quando ela desceu do táxi. Tinha um olhar perdido, um "sei lá o quê" de tristeza.
Jamais se perdoaria por ter cometido o mesmo erro.
Como pode agir de forma tão estúpida? Pensou.
Agora, era tomar um copo de café para aquecer o corpo e limpar a alma daqueles pensamentos e, quando o dia amanhecer, ela terá somado mais uma cicatriz na auto estima já tão dilacerada.
Mas ela é mulher, e mulher alguma perde o poder por coisas miúdas.
desencontro verbal
Tinha tudo para dar certo, não fosse o conjugar do verbo.
Mesmo irregular e transitivo direto, eu conjugaria que tu estás.
Pena que preferistes conjugá-lo na primeira pessoa do pretérito perfeito do indicativo.
Assim é a vida, um desencontro verbal.
Foto by Jota Nilson
Cais do porto de Rio Grande
Rio Grande/RS
Foto by Jota Nilson
Porto Alegre/RS
o que há em mim
Não quero ouvir-te, ó, clamor da alma,
Dizer de súbito o que me atormenta,
Mas quero sentir-te assim, plácida e calma,
Proferir o sussurro que me apascenta.
Foto by Free Canva
amizade colorida
Não, ela não é minha esposa ou namorada, é apenas minha amiga, amiga querida aliás, com quem divido minhas alegrias e tristezas, angústias, medos e certezas, além de boas rodadas em um tabuleiro de xadrez, onde invariavelmente ela é vencedora. Apreciadora de bons vinhos, os quais me faz provar em sua língua, para me abastecer de ternura, ela reparte comigo os seus gemidos de prazer e me faz sorrir, quando roça de leve o sexo em minhas coxas. Temos gostos semelhantes pelos quatro elementos e já dançamos nus em meio a tempestade.
Seu riso é luz quando relata as minúcias dos seus planos. Ela quer conquistar o mundo e espera que eu esteja aqui para ver isso acontecer.
Ela é minha canção favorita e é tão bonita, que por vezes tenho medo de tocá-la e assim fazê-la desaparecer, como se uma brisa fosse.
Ela vive nas partes mais deliciosas da minha existência, que são os meus sonhos
encilhando a vida
Foto by Jota Nilson
Arredores de Ouro Preto
Ouro Preto/MG
Na verdade, a pinguela nem era tão grande assim, grande mesmo era o medo de atravessá-la.
O outro lado tinha lá seus encantos: a água pura e fresca da cacimba, o doce sabor da bergamota e o frescor da sombra das árvores.
O tronco roliço, que fazia às vezes de pinguela, não era nem um pouco confiável e, o desafio era o de se manter em pé, mesmo que o danado rolasse para o lado. Se caísse, o tombo seria feio. Ninguém, queria se estatelar nas pedras finas que desafiavam a correnteza do arroio.
Covarde ela não era, preferia pensar que era apenas cautelosa.
Tinha um modo próprio de encarar desafios e, a pinguela era o mais significativo de todos, pois havia sido o primeiro da sua existência até então.
Não poderia se dar ao luxo de cometer a maior e pior falha que todo novato invariavelmente comete: "o excesso de confiança".
Assim, ela se viu obrigada a encilhar a vida.
Foto by Jota Nilson
Parque Farroupilha
Porto Alegre/RS
tratado sobre a resiliência
E o vento, tal qual um bêbado que retorna sem a chave de casa, jogou-se contra as paredes, sacudiu, xingou e até mexeu com o telhado.
Como não o atendi, serenou em forma de chuva, não sem antes ter deixado o seu estrago.
Foto by Jota Nilson
Vista do pátio da TV Record
Porto Alegre/RS
Você foi sol na minha noite
Foi terra que beija o mar
Escudo no meu açoite
E luz no meu caminhar.
Das vidas que viveremos
Não sei por qual começar
Rogo por teus predicados
Sem os quais irei faltar.
Por certo me tens na conta
Dos sonhos que não sonhei
Dos risos que estavas pronta
E dos medos que te causei
Ao encher tuas mãos vazias
Dos suspiros que ganhei.
Pelas frestas nas varandas
Teus passos mandam recados
Nas loucuras das cirandas
Dos meus olhos marejados
Vejo cores que salpicam
Teu coração quebrantado.
Por fim, me encontro pensando
O que seria de mim
Se eu tivesse te esperado?
ode à ilusão tardia
Foto by Jota Nilson
Centro Histórico
Porto Alegre/RS
Foi um raio, foi fugaz
Foi intenso, foi tenso
Ou pra você tanto faz.
Do olhar que nasceu torrente
Cheiro de mato, pão quente
Fez-se nuvem de poeira
Correu rios, desceu ladeiras
Sumiu nas vilas, vielas
Desfilou em passarelas
Querendo meu bem querer.
Se é por ficar ou sofrer
Eu sofro e fico querendo
Fazer parte de você.
não pense que esqueci
Foto by Jota Nilson
Parque Aldeia do Imigrante
Nova Petrópolis/RS
eu e os verões
E as minhas pegadas foram ficando para trás, e eu as via tão distantes que mal podia crer que havia trilhado aquele longo caminho.
A me orientar, apenas um relógio de um ponteiro só, que tal qual bússola sem norte, apontava a esmo para rumos desconhecidos. Melancolia mesmo, senti ao virar de costas para o por do sol, perdendo assim a magia do toque na linha do horizonte.
As folhas de outono, nas quais pisei, não se recuperarão, mas sei que lhes restará a esperança do reflorescer.
Não serei mais pólen, pois me faltará o vigor do bater das asas. Talvez, ao final, me transforme apenas em uma lembrança, como um retrato desbotado, esquecido no fundo de uma gaveta.
É pesaroso, pois ainda tenho muitos verões a oferecer.
Foto by Jota Nilson
Bairro Belém Novo
Porto Alegre/RS
borboletas
De longe se podia ouvir o ranger dos pés da cadeira de balanço sobre o piso de madeira da varanda.
Solitária, ela contemplava o pôr do sol todos os dias.
Entre os dedos, o cigarro Kiss Me era o que a mantinha ligada a realidade.
Não queria pensar nas perdas, não queria pensar nas dores.
Mas o que fazer para evitar tais pensamentos?
Já não conseguia mais transformá-los em borboletas.
A vida tinha sido muito dura com ela.
Foto by Jota Nilson
Trapiche da Praia do Laranjal
Rio Grande/RS
mundo cão
Não era de hoje a curiosidade que ela tinha em saber o que acontecia do lado de lá da margem do rio.
Pacata, reservada e sem talentos, ela sabia que era "do lar", como insistia em dizer seu companheiro. - O mundo lá fora é cão, minha filha, ele repetia sem cessar.
Mas, curiosidade é bicho que não se aquieta no peito.
Era preciso desvendar o mistério. E foi assim, levada pela necessidade das descobertas, que ela encontrou a vida.
a rua que foge por
debaixo das pedras
Foto by Free Canva
A rua que foge por debaixo das pedras mostra um tanto do que somos.
Quando sorrimos, segurando o choro ou cantamos alto, quando apenas deveríamos escutar o silêncio da resposta muda e, até mesmo, quando partimos querendo ficar. Somos o tudo desse nada incompleto, que baila em desatino pelo desvario da mente.
Somos o nada desse tudo completo que nos bate na cara, quando deveria apenas nos beijar.
A rua que foge por debaixo das pedras é o medo de ficar e ir embora. É também a chuva impertinente que invade a sala e umedece a sombra da tua partida, quando deveria apenas ser o abraço quente da tua chegada.
A rua que foge por debaixo das pedras é enfim, a revoada dos pássaros que se despedem do verão.
Foto by Jota Nilson
Prainha do Veludo
Porto Alegre/RS
Hoje estou mais plácido, cândido, comedido.
Olho antes de pisar, penso antes de falar e respiro pausadamente.
Se isso é essência de amor? Não sei, apenas sinto.
Percebo que a caminhada já aponta um fim e, sigo, por vezes claudicando e em outras, numa altivez de causar inveja, buscando um vento que me leve e que me torne leve para, num sonho, amar verdadeira e intensamente. Não quero beijos escondidos na escada e nem tampouco pele que anseia o toque.
Semente que não germina é fato que não aconteceu e eu, sou plenitude, sou mistério a ser desvendado, sou sombra que se transforma em oásis.
E, quando ouvirmos da tua boca que sim, eu sou tua paz, aí então serei eterno e terei colhido tanto amor que serei capaz de repartí-lo.
eu, oásis
cataventos
Foto by Jota Nilson
Festa da Uva
Caxias do Sul/RS
Por vezes, ela sentia-se forasteira dentro dela mesma. Irrequieta, assobiava fados melodiosos na esperança de acalmar os cataventos que insistiam em povoar seus pensares.
Na memória, os sorvetes de marias-moles eram tão presentes que chegava a sentir o gosto e o cheiro deles. Assim espantava a solidão.
Foto by Jota Nilson
Porto Alegre/RS
em velho ser
Há um sujeito estranho
Que eu acho que está morando
Naquela caixa de vidro
Lá no meu quarto de banho.
O estranho é, que esse estranho
Passa o dia a me imitar
Acho que só prá irritar.
Se me olho no espelho,
Lá está ele a me olhar
Se me escovo, sem demora
Ele passa a se escovar.
Às vezes eu até acho
Que esse estranho sujeitinho
Até se parece comigo
Mas como é velho, o coitado
Que tem o cabelo branquinho.
quando formos nuvem
Sobraram respostas para perguntas que nunca foram feitas. Apesar de tudo não foi o fim, e sim o começo.
E, mesmo quando a areia ainda se dobrava ante o mar, não havia mais o reflexo da tua luz.
Peças antigas que não foram encenadas e rolos de filmes que não assistimos, viraram objetos empoeirados na estante e, servem apenas como geografia ou coisa pura.
Dos sais, não tenho notícias, assim como das roupas íntimas que jogamos pela janela quando o verão chegou.
Vejo que a escada do pensamento se torna esquina a cada rajada de vento e, quando acordo, os meninos estão correndo à minha volta. Chego a sentir o cheiro da grama recém cortada.
Talvez não tenha sido desonesto o teu abraço e nem tenha sido falso o teu suor no meu peito, apenas circunstância entre lençóis, da parte que me coube e se tornou lenda.
Aquele código morse do nosso olhar já não nos pertence mais.
As pegadas que deixamos nessa aventura, misteriosamente desapareceram, ou tomaram rumos inversos, feito versos sem rima que se apagam ao toque. E assim, quando formos nuvem, restará um relatório esquecido no fundo de uma gaveta e, junto dele, negativos em preto e branco que nunca serão revelados.
Foto by Jota Nilson
Praia de Ipanema vista do pátio da APCEF
Porto Alegre/RS
esperança
O tempo que há em mim não é dado a condolências, pois já senti o gosto da terra e renasci mais forte.
Que seja breve o mergulho.
hai-kai
Foto by Jota Nilson
Porto Alegre/RS
A minha mãe já dizia, que a avó dela dizia, que a roupa bem lavada tem cheiro de melancia.
sobraram as estações
Foto by Jota Nilson
Praça Guia Lopes
Porto Alegre/RS
Quando ela percebeu, já era tarde.
O inverno havia invadido a cama, fazendo a pele repelir o toque com a mesma intensidade que outrora desejara.
O pranto mudo ficou abafado entre a seda dos lençóis e manteve o grito sufocado na garganta.
Ela sabe que não haverá sol que, mesmo evaporando o orvalho lá fora, seja suficiente o bastante para fazê-lo ficar.
Quem sabe a primavera lhe traga mais cores na próxima estação.
Foto by Jota Nilson
Termas Del Arapey
Uruguai
tratado sobre a solidão
As folhas de outono já não trazem mais o riso alegre e, nem o vento sussurra palavras ininteligíveis. Agora, a chuva e o breu da noite se confundem com o olhar sombrio. Quando a primavera antecipou o fim, ela se deu conta de que não haviam livros nem fotografias contando a história.
Sentada na cadeira de balanço, sozinha na varanda, olhava para o relógio na esperança de que ele girasse no sentido anti-horário.
Horas quebradas, quem as quer?
Foto by Jota Nilson
Ilha de São José do Norte
Rio Grande/RS
O chão rangia sob os pés no assoalho da sala vazia. Soluçava baixinho, para que nem ela mesma pudesse ouvir.
Queria ter ido embora há muito tempo, embora não tivesse feito esforço algum para isso.
Para ela o leito não estava vazio, pois toda noite deitava ali seus desejos e sonhos. "Ele vai ficar", pensava consigo mesma.
Olhar para o retrato já carcomido pelo tempo e não entender em que ponto se perderam aqueles sorrisos era desolador. Ajeitou os cabelos, respirou fundo e saiu. Não era a primeira vez que se via sozinha. Iria sobreviver.
A rua, agora, tinha um gosto amargo. O sal da lágrima vertida não é acalanto, é pesar.
lágrima salgada
Foto by Jota Nilson
Parque Salto Ventoso
Farroupilha/RS
A solidão lhe pesou quando os olhos tocaram as paredes em ruínas. Como pode ter sido tão tola em não perceber o vazio da mansão sempre cheia? Interesseiros, pensara. Quando a porta de ferro fechou atrás de si, restaram poucos lampejos de lucidez. Agora era ela por ela e mais ninguém. Quando o último floco de neve tiver tocado a copa das árvores, sua existência terá sido esquecida. Só resta jogar fora todos os cartões de natal, pois de nada servem sem a essência dos remetentes. Saudade se cura com presença, ela costumava repetir.
abandono
Foto by Jota Nilson
Festa do Folclore
Nova Petrópolis/RS
passado, quem precisa
dele?
O sorriso largo e a eloquência febril eram apenas placebos, administrados contra uma dor pungente e infinita.
Ela contava pesarosamente os dias para a frente, pois teimava em apagar as próprias pegadas. Dizia que assim não saberia voltar. Passado, quem precisa dele?
Foto by Jota Nilson
Festa do Folclore
Nova Petrópolis/RS
deslembrada
Ela se recusava a acreditar que havia sido esquecida. Preferia pensar que tinha sido apenas deslembrada, e assim passava os dias a costurar os retalhos, coloridos pela imaginação.
Como companheira, lhe restou apenas a velha Singer barulhenta.
Foto by Jota Nilson
Porto Alegre/RS
retalhos
A xícara de café é um retalho do tempo, que hora lento, hora açodado, segue seu intento sem olhar para trás.
Se deixará rastros, não iremos vê-los, pois nos faltará a ousadia de acareá-los e, assim, nos tornaremos invisíveis.
Não quero ter a crise da meia idade, quero ter a crise da idade inteira.
Foto by Jota Nilson
Interior de Gramado
Gramado/RS
inspiração
Hoje o meu infinito particular me pareceu pequeno... voaram poesias ao meu redor. Coisas de quem consegue ver, mesmo que, com os olhos fechados.
Foto by Jota Nilson
Vista aérea da cidade
Porto Alegre/RS
teu caminhar
E então, quando olhares para frente, verás o mesmo caminho, porém com outro olhar.
E assim, de tanto e tanto caminhar, repousarás serena em meu peito e verás que eu sou a tua paz.
viajar
Não preciso de muito, pois a bagagem da vida é pesada.
Quero ter a serenidade de um sonho que me leve de súbito e me faça folha de outono.
Foto by Jota Nilson
Igreja em Ouro Preto
Ouro Preto/MG
não me fale dos teus medos
Eu lembro que fazia frio, muito frio e chovia.
Estava escuro. Eu gritei, mas gritei tanto até meus pulmões estourarem.
Ninguém me ouviu. Ninguém me respondeu.
Por que vejo aquilo que não entendo?
Por que entendo aquilo que não vejo? Correspondência entregue para o destinatário errado não é dom, é castigo.
Agora, vou cuidar das minhas feridas sem a vontade de curá-las.
Cicatrizes de um tempo que não aconteceu não contam histórias, elas se tornam mariposas bailando ao redor da luz, em revoadas infinitas.
Meu tempo, seu tempo, sem tempo.
for us
Foto by Jota Nilson
Porto Alegre/RS
E o que chamou a atenção foram as anotações encontradas num livro empoeirado: "nunca esqueceremos do gin/tônica e seus efeitos colaterais, das conversas com Clint Eastwood e de agradecer a comida entoando Oh Glória!"
acusação
Das tantas armas que o homem, tem ao alcance da mão
A que fere mais profundo é a tal da acusação.
E é ofício que se aprende mesmo até na tenra idade,
É coisa que vem de berço, que vem lá da antiguidade.
Com essa arma maldita não é preciso ter mira ou curso de manuseio
Jogue a palavra ao vento e posso lhe garantir, que acertará bem no meio.
E mesmo que não proceda a acusação que se faz
O prejuízo que ela traz não tem mais reparação.
Pode negar, desmentir, e fazer um “a pedido”
Pode chorar o defunto e até jurar de pé junto
E achar que não está perdido
Mas o rombo que se instala, maior que furo de bala
Transforma o melhor dos homens, num ser estranho e maldito
A língua, que não tem osso, não desce pelo pescoço
E se torna arma mortal, pois insana, maldosa e louca,
Nunca se aquieta na boca, e o que sai dela faz mal
Foto by Jota Nilson
Quaraí/RS
tapera
A lo largo, no varal dos pensamentos
Na tarca, contei lamentos,
Rememorando quimeras.
Sinto a falta do teu beijo tão ardente
E meu corpo já nem sente
O frescor da primavera
Pus um buçal, enfrenando teu tormento
Fui bagual, fui violento
Coisa que me desespera
Sei que não te adulei tanto quanto deveria
Pois teus mimos de guria
Para mim não eram nada
E agora, prendinha amada
Venho te pedir perdão
Por ter sido quem eu era
Pois meu pobre coração
De tanto viver solito
Se transformou em tapera
Foto by Jota Nilson
Céu sobre o Lago Gauíba
Vista do pátio da TV Record
Porto Alegre/RS
vento
O vento que levou um tanto da minha alegria já não tem mais nome, é passado.
E se um dia for revisitado, será apenas vento.
Foto by Jota Nilson
Teleférico do Complexo do Alemão
Rio de Janeiro/RJ
As favelas cariocas e o paradoxo: estando no asfalto elas nos espantam, mas aqui do alto elas nos encantam.
o encanto espantoso
da favela
Foto by Jota Nilson
Parque da Expointer
Esteio/RS
pegadas
Sempre deixo minha marca por onde passo.
Quem quiser, que me siga...
Foto by Jota Nilson
Porto Alegre/RS
mentiras ditas
na alcova
Por fim, deu-me as costas com desfaçatez.
Restou-me aos ouvidos, o farfalhar das tuas anáguas.
Foto by Jota Nilson
Arroio Dilúvio
Porto Alegre/RS
tá todo mundo louco
Mudo, mas sem deixar de falar, troco as coisas de lugar
Foto by Jota Nilson
Parque Aquático Ácqua Lokos
Capão da Canoa/RS
vida passa, passa vida
O rebuliço da vida ao lado não cessa e me faz perceber que o vento não mexe mais as folhas do meu arvoredo.
Foto by Jota Nilson
Taverne Le Chat Noir
Porto Alegre/RS
descaminhos
Caminho, e a cada passo, passo.
Por onde andas?
Foto by Jota Nilson
Porto Alegre/RS
sem dó nem piedade
Então vida, tá achando que eu não notei que você parou de usar K.Y?
Foto by Jota Nilson
Estátua do Pelé
Três Corações/MG
Daquilo que vejo e sei que pode ser efêmero na memória, dou um jeito de torná-lo eterno, mesmo que por um instante ou num instantâneo
instantâneo
Foto by Jota Nilson
Praia de Ipanema, Lago Guaíba
Porto Alegree/RS
Já faz parte do corpo e é impossível dissociar.
Sem ela, sou nada.
Na verdade, é ela que me leva. Eu simplesmente a abraço e seguimos a jornada.
Ela é meu porto seguro, ela me entende e me ampara. Quem tem ou já teve um amor assim, compreenderá.
somos dois e somos um
Foto by Jota Nilson
Por do Sol no Lago Guaíba visto do CT do Internacional
Porto Alegree/RS
sunset
Em doses generosas,
alivia a tensão.
Foto by Jota Nilson
Porto Alegree/RS
então tá
Não procure explicações. É só a maneira de olhar. Então tá...
Foto by Jota Nilson
Porto Alegree/RS
eu, tu, ele, nós, vós, eles
Você é a energia que emana.
Você emana a energia que é.
Foto by Jota Nilson
Museu do Rio e Casarão da Secretária do Meio Ambiente, vistos da Ponte Histórica do Rio Dos Sinos
São Leopoldo/RS
autumn leaves
Embarque nessa nave louca e não diga que a razão está adormecida.
Sinta apenas, e eu chegarei no tempo das folhas pelo chão.
fim de papo
Queria te falar de tantas coisas
Mas a minha sobriedade não deixou,
Agora, mergulhada em um Chandon
Consegui achar o tom
E a minha língua destravou.
Você foi por demais ardiloso
Quando do meu coração se apoderou
Veio pleno, se fazendo de gostoso
Me enrolou, foi venenoso
Foi ali que nosso caso desandou.
Beba uma dose de Campari, e não se compare
Com outros que tanto amei
O inverno que cobriu a nossa cama
Apagou aquela chama
Que um dia por você incendiei
Se a minha pele repeliu o teu tocar
Não foi por falta de razão
É fim de madrugada,
O orvalho vai evaporar
E no meu peito, é só bebida, melodia e canção.
Não se humilhe tanto assim
Não foi por mim, que você se apaixonou
Teu desgosto já tem nome e sobrenome
Então vê se agora some
E aceite o fato...
O nosso lance teve um fim
Foto by Jota Nilson
Porto Alegre/RS
vida louca, vida breve
Complicado mesmo é quando a vida é leve e te entrega um primeiro plano bem focado, mas teu desejo está no segundo plano e fora de foco.
Foto by Jota Nilson
Rota RJ/POA a bordo de avião Latam
rebanho de nuvens
Agora estou pronto!
Já tenho meu lugar no mundo e sou dono de um rebanho de nuvens.
Sinto não poder tocá-las.
Foto by Jota Nilson
Porto Alegre/RS
solito
Hoje pela manhã, quando abri a janela ele entrou e, sem cerimônia, foi ocupando espaços.
Bom dia sol, fique à vontade.
Foto by Jota Nilson
Porto Alegre/RS
paralelo 30
Ela é feita de muitos mistérios, alguns insondáveis até.
Mas mesmo assim é tão transparente e cheia de certezas.
Selva de pedra das pedras da selva.
Um porto para me deixar alegre
Foto by Jota Nilson
Centro Histórico
Porto Alegre/RS
entrega total
Mulher, apossa-te do meu desejo,
Que sobejo te espera,
Deixa a natureza do teu corpo
Transformar o ato,
Receba-me em tuas entranhas
E aninha-te em meu peito,
Até que satisfeito,
O orvalho se evapore.
E assim, a manhã
Há de nos encontrar.
Foto by Jota Nilson
Zona Rural
GramadoRS
ficou no passado
O gemido das rodas desgastadas pelo tempo e, o vinco na poeira do chão da estrada sob o peso da carga, deixaram de existir.
Houve um tempo em que o tempo só existia por tua existência.
Hoje a carroça é saudade e, talvez por penitência, te mostramos em forma de relíquia na cidade.
Foto by Jota Nilson
Porto Alegre/RS
Com paciência, a velha varria as folhas que o outono despregava das árvores, fazendo-as cairem ao chão. Na ponta da vassoura, ela teimava em virar as páginas da enciclopédia que não leu até o final. Em movimentos lentos, pintava as nuances daquilo que a memória permitia alcançar.
Dores, já não sentia mais. O que lhe afligia era o dilacerar da alma causada pelo abandono.
Ao fechar os olhos, podia ouvir o som do vento acompanhado das vagas do mar, na esperança de que isso varresse da sua existência um calendário vazio. Assim a terra completava mais um movimento de rotação.
calendário vazio
Foto by Jota Nilson
Templo Budista Chagdud Gonpa Khadro Ling
Três Coroas/RS
decifra-me ou te
devoro
Mente insana e insone, de onde emergem borboletas cinzas de uma asa só,
conjugadas num pretérito imperfeito.
nem tão anjo assim
Foto by Jota Nilson
Porto Alegre/RS
Essa coisa de ser anjo o tempo todo já está ficando chata, pois até as asas me incomodam. No fim de semana vou fazer um estágio como capeta.
O autor Jota Nilson foi repórter cinematográfico e agora é escritor, roteirista, compositor e acabou aposentado por invalidez, desde que resolveu entrar para o ramo da engenharia civil e construiu três pontes, todas de safena.